O primeiro sentimento ao ouvir o trabalho de André Mussalém é o de curiosidade sobre um som que nos parece familiar, mas que ao mesmo tempo tem suas peculiaridades. Ao saber que esse não tão jovem compositor já soma quase três décadas de autoria musical, com mais de cem composições, o sentimento que predomina é o de indignação: como nos privar durante tanto tempo de seu talento? Até que descobrimos os porquês de sua trajetória e concluímos que o melhor da vida só acontece no momento certo. Mais do que uma obra de um autor longevo e intérprete estreante, No Morro da Minha Cabeça, um disco de crítica aos estereótipos do samba que não por acaso surge no marco do centenário desse gênero, é um projeto concebido muito inteligentemente e executado com um esmero quase sem igual.
Aos 40 anos de idade, revelado músico aos 16, André Mussalém desde cedo começou a estudar o processo de formação do povo brasileiro por meio da música. E, há 20 anos, passou a elaborar trabalhos conceituais, a começar com os CDs de demonstração (demos) Bossa, Confraria de Bamba e Obra Aberta, Carta Fechada: Ilustre Mestre Paulinho (2004), este último um tributo a Paulinho da Viola, uma de suas principais (e nítidas) influências, feito exclusivamente para presentear o próprio homenageado.
Paulinho está ali, naquele bojo riquíssimo da música popular brasileira desde o festival de 1967, sobretudo na produção dos anos 1970, que tanto impressiona André Mussalém, que ainda confessa haver se tornado compositor por causa de Caetano Veloso. E foi devido a uma provocação de um outro pilar da MPB, o também cantor e compositor Chico Buarque, que surgiu No Morro da Minha Cabeça.
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Em 2004, Chico afirmou que a canção no Brasil havia chegado ao fim. Isso foi quase o suficiente para André Mussalém se ver desafiado a elaborar um álbum no qual radicaliza a canção sob os moldes da música popular brasileira que se faz há meio século, no que diz respeito à tradição de composição, arranjos, base de acordes e instrumentos acústicos que dialogam com o popular e o erudito, porém, com uma peculiaridade: discutindo os estereótipos do samba. Digo “quase suficiente”, pois outra motivação para o autor foi a realização independente do álbum Não Me Peçam Jamais que Eu Dê de Graça Tudo Aquilo que Eu Tenho pra Vender, do também pernambucano Herbert Lucena, grande vencedor do 23º Prêmio da Música Brasileira, em 2012. No Morro da Minha Cabeça, assim como o disco do amigo Herbert, criou vida com recursos próprios, sem entrar na fila dos incentivos culturais. O resultado da aposta pessoal é um trabalho calcado no melhor dos grandes álbuns do gênero, mas que em sua construção, em letras, ritmos, melodias e harmonias, reflete sobre seu tempo e seu universo.
No Morro da Minha Cabeça tem como introdução um trecho de uma entrevista de Madame Satã (o pernambucano, de Glória do Goitá, João Francisco dos Santos, 1900-1976) à TV Tupi, na década de 1970, para logo em seguida ouvirmos a faixa de abertura, Meus Irmãos Ouvem Rock, espécie de mea culpa do autor com seus ouvintes. “Estou jogando aberto com o público. Sou um cara de apartamento e a minha formação foi ouvindo disco na vitrola”, afirma o compositor. Diz a canção: “Eu não sou a mulata/ Eu não sou o malandro (…)/ Eu não tenho cuíca/ Eu não frequento o morro (…)/ Eu não sei jogar bola/ Eu não uso navalha (…)/ Meus irmãos ouvem rock (…)/ Mas hei de cantar a dor que nasce da saudade (…)”, declara, com toda sinceridade.
“Vou pro mar/ E se o véu da dor em mim se encantar/ Boto meu All-Star vermelho e vou sambando devagar”, conta a letra de All-Star Vermelho, outro potencial hit que também põe em xeque as convenções tradicionais do ritmo. Em 11 canções, No Morro da Minha Cabeça faz referência a várias escolas (estilos) e épocas desses 100 anos do samba, desde que Donga lançou o marco Pelo Telefone, ao mesmo em que demonstra uma total contemporaneidade, até flertando com a música pop, sem ser pop.
Mesmo sem saber jogar bola, como diz na faixa de abertura, André Mussalém soube reunir um time de craques responsável pela excelência do produto final. A começar pelo violonista de 7 cordas e arranjador Ricardo Freitas, responsável por escalar expoentes da música instrumental pernambucana como o bandolinista Rafael Marques, o cavaquinista João Paulo Albertim, o também 7 cordas Rodrigo Samico, a flautista Frederica Bourgeois e os percussionistas Tadeu Jr. e João Victor Gonçalves, além das cantoras Kelly Benevides e Chris Nolasco (voz responsável por apresentar pela primeira vez suas composições para o grande público, no CD Pele Negra). O trabalho ainda inclui instrumentistas pouco usuais nas formações de música popular atual, a exemplo da fagotista Maria Santos, o oboísta Marcelo Souza e o clarinetista José Adilson Bandeira. Longe de uma roupagem antiga, Mussalém recupera uma sonoridade comum nos tempos de ouro da canção, quando instrumentos de madeira se juntavam no estúdio para dar vida ao que se começava a chamar de samba.
O projeto gráfico acurado, assinado por Guilherme Luigi (autor de trabalhos como De Baque Solto, do conterrâneo Siba) e com fotos que revelam um pouco da intimidade de um autor ao mesmo tímido e eloqüente, segue com o mesmo zelo. André Mussalém revela ainda que todo esse cuidado, da concepção do disco ao produto final, tem como referência e segue o mesmo padrão de qualidade dos trabalhos do intérprete e produtor Gonzaga Leal, cuja discografia completa passou por minhas mãos e, sem dúvida, posso afirmar que é o principal realizador de biscoitos finos da música pernambucana atual.
Ao mesmo tempo em que desconstrói os estereótipos do samba e recupera a tradição rítmica, melódica e harmônica do gênero, No Morro da Minha Cabeça ainda evita desconstruir a canção – indo de encontro a uma forte tendência atual – e mostra o valor que esta ainda exerce na música popular brasileira. Como diz o autor, “um disco para iniciados”. Uma obra para ser saboreada aos poucos, a cada momento descobrindo novas riquezas.
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