Nesta quinta-feira (19), são completados 35 anos da morte de Elis Regina. O dia 19 de janeiro também marca o nascimento de Nara Leão, que completaria hoje 75 anos. Em janeiro de 2011, na edição 54 da Revista Brasileiros, foi publicada reportagem com um resumo biográfico das duas estrelas da MPB, reportagem esta que também revela caminhos cruzados na história das duas artistas.
Elis e Nara
Primogênita do operário Romeu e da lavadora de roupas Ercy, a gauchinha Elis Regina Carvalho Costa veio ao mundo em berço humilde, em 17 de março de 1945. Sorte maior teve Nara Lofego Leão, a caçula do bem-sucedido advogado Jairo Leão e da dona de casa Altina Lofego. Nara nasceu capixaba em 1942, mas mudou-se para o Rio de Janeiro com um ano de vida. Cresceu em plena Avenida Atlântica, reduto de abastadas famílias na orla de Copacabana. Desde os 7 anos de idade, a pequena Elis cultivou o sonho de tornar-se cantora de sucesso, peregrinando com o pai em sua Porto Alegre natal e no circuito de rádios, gravadoras e emissoras de TV do eixo Rio-São Paulo. Uma árdua batalha, cheia de privações e desafios na mais tenra idade.
Já a menina Nara teve infância confortável, ampla e requintada formação cultural. Em seu apartamento à beira-mar, em frente ao Posto 4, foi anfitriã e integrante de uma revolução musical que arrebataria o Brasil e o mundo. Plena de uma precoce maturidade, aos 14 anos Nara aproximou-se de compositores como Tom Jobim, Carlos Lyra e Roberto Menescal. Sedutora, deixou estupefato o letrista e jornalista Ronaldo Bôscoli, 16 anos mais velho, que abriu mão dos dias de notório conquistador para namorar a adolescente que se tornaria a musa da Bossa Nova, como a definiu, em 1963, o grande cronista Sérgio Porto.
Rei dos palcos, além de exímio produtor de pequenos sucessos, Bôscoli era também um aspirante ao título de “Rei das Mulheres” e o fim de seu noivado com Nara Leão extasiou a imprensa marrom da época. Retornando de Buenos Aires, em 1964, ocasião em que produzia um show da cantora Maysa, ao desembarcar no aeroporto Santos Dumont, Bôscoli deu de cara com dezenas de profissionais da imprensa à espera de Maysa, que havia feito uma convocação urgente para anunciar o casamento dos dois. Indignada com o escândalo e a traição, Nara rompeu definitivamente com Bôscoli (que também se envolveria com Elis), trocou a Bossa Nova pelo samba e casou-se com o cineasta e compositor Ruy Guerra. Em 1969, um novo casamento, desta vez com o também cineasta Cacá Diegues, com quem Nara teve um casal de filhos, Isabel e Francisco.
Já a relação entre Bôscoli e Elis foi marcada por intensa alternância de amor e ódio, desde os primeiros dias da cantora no Rio, em 1963, até o casamento em 1967. Um turbilhão, flagrado com fidelidade na biografia Furacão Elis (Editora Leya, 272 páginas), da jornalista Regina Echeverria, amiga íntima de Elis. O livro revela a alma atormentada que havia por trás da grande artista e acaba de ser relançado pela Editora Leya. A versão foi atualizada por Regina, que acrescentou importantes depoimentos, como os de Gilberto Gil e do jornalista Nelson Motta. Por seis meses, Motta viveu um romance proibido com a cantora, no ápice dos conflitos que levaram Bôscoli e Elis à separação, em 1972. Frágil, com o pequeno João Marcello Bôscoli que mal completara 2 anos, Elis descobriu refúgio nos braços do pianista Cesar Camargo Mariano. Teve com ele outros dois filhos, Pedro Camargo Mariano e a caçula Maria Rita, cantores como a mãe.
Elis e Nara tiveram origens distintas, viveram maus bocados, mas foram mulheres fortes e independentes. Consolidaram carreiras de importância capital para a transição do que, nos anos 1960, era chamado MPM (Música Popular Moderna) e, na década seguinte, passou a ser sinteticamente definida como MPB (Música Popular Brasileira). Dona de uma potência vocal impressionante para sua frágil compleição (media 1,53 m), Elis iniciou a carreira cantando rocks, boleros românticos e sambas para tornar-se artista singular. Cantava de tudo, com a mesma entrega e requinte técnico. Discípula do canto minimalista de João Gilberto, Nara pôs a voz miúda a serviço da Bossa Nova para, logo depois, mergulhar de cabeça no samba de morro e na canção de protesto, no histórico show Opinião, realizado em 1964, no Teatro de Arena, ao lado de Zé Keti e João do Vale, com direção de Augusto Boal.
Em 1968, aderindo à revolução de Caetano, Gil e Tom Zé, Nara lançou um disco homônimo de forte acento Tropicalista. Tratada como alienada por essa mesma turma e “enterrada” por Henfil em uma tirinha de O Pasquim, por ter cantado o Hino Nacional na Olimpíada do Exército, em 1972, Elis fez de sua interpretação de O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, o hino da Anistia. Acertou as contas com o cartunista, ao tornar-se porta-voz do sonho de ver “a volta do irmão do Henfil” (o sociólogo Betinho), enfim, realizado.
Inquietas artisticamente, Nara e Elis ajudaram a construir para a nascente MPB um caráter de influências multifacetadas. Foram ícones de um período que também revelou cantoras como Maria Bethânia, Gal Costa, Nana Caymmi, e compositores como Chico Buarque, Edu Lobo e Milton Nascimento. Artistas que, ao longo dos anos 1970, fizeram da MPB um produto cultural que venderia milhões até a chegada da década seguinte, elencada por uma geração que deu voz a um rock brasileiro de forte submissão estética com as matrizes americanas e britânicas.
A pluralidade de gêneros defendida por artistas, como Elis e Nara, e a antropofagia proposta pelos tropicalistas na virada dos 1960 para os 70 (influência até mesmo para o rock da época, vide os exemplos máximos d’Os Mutantes e do Novos Baianos) seria completamente esquecida, nos anos 1980, por uma geração que só tinha olhos e ouvidos para o futuro e se esbaldou, deslumbrada com os dias otimistas de abertura política e com a juventude estrangeira. Nara e Elis, ao contrário, viveram intensamente seu País e sonharam transformá-lo.
Texto retirado do site Brasileiros
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