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Elza Soares: mulher, negra, brasileira e feminista

Elza Soares (Via Geledés, por Aria Rita do Revista Capitolina)

Considerada “a melhor cantora do milênio” pela BBC, descrita como “uma mistura explosiva de Tina Turner e Celia Cruz” pela Time Out, e conhecida no mundo todo como A Rainha do Samba. Nascida na favela da Moça Bonita, passava a infância “rodando pião e brigando com os meninos”. Casou pela primeira vez aos 12 anos, teve seu primeiro filho aos 13, ficou viúva aos 21, e se tornou sensação internacional aos 30. Elza Soares não é apenas um ícone como artista, é também um ícone como pessoa, e um exemplo de superação. A vida não deu trégua pra essa mulher: teve que ser forte pra lidar com inúmeras dificuldades, e ainda assim, nunca deixou de subir no palco com um belo sorriso no rosto e contagiar a plateia com a alegria do samba.

Elza Soares em turnê de "A Mulher do Fim do Mundo". Foto: Reprodução/Facebook
Elza Soares em turnê de “A Mulher do Fim do Mundo”. Foto: Reprodução/Facebook

Foi chamada de “vadia” pelo país, ao se envolver com o jogador de futebol Garrincha, que largou a esposa pra se casar com Elza. Era xingada de “bruxa” pelos amigos do marido, que não gostavam dela por proibi-lo de sair pra beber, tentando protegê-lo de seu alcoolismo. Em 1969, Garrincha dirigia bêbado, com Elza, sua filha Sara, e a mãe de Elza, Rosária Maria Gomes, no carro. Sofreram um acidente, e Dona Rosária faleceu. Mas a morte não era uma estranha pra Elza: a moça já havia perdido um marido e dois filhos, e, mais tarde, viria a perder outros três. Também sofreu com a morte do próprio Garrincha, que faleceu após um ano de divórcio, quando Elza ainda sentia muito carinho pelo ex-marido.

Elza Soares e Garrinha com a faixa do campeonato mundial de 58
Elza Soares e Garrinha com a faixa do campeonato mundial de 58

Nada é doce e suave quando se trata de Elza Soares. Desde sua expressão dura, emoldurada por seu afro volumoso coroado com flores ou um turbante, até sua voz metálica, suas feições felinas, seu sorriso largo e rasgado, sobrancelhas desenhadas altas e arqueadas, e sua eloquência curta e grossa, aquilo que Elza transmite mais que tudo é força. Hoje, tem 60 anos de carreira musical. Seu samba alegrou e inspirou três gerações, e continuará a alegrar e inspirar as próximas. Elza Soares é um clássico, e não apenas um daqueles clássicos antigos, tipo aquela galera que fez músicas geniais e se aposentam, ficando presas no passado. Ela é um clássico que provou que enquanto estiver viva vai continuar se adaptando às novas gerações e aos novos mundos, sempre dando um jeitinho de adaptar seu talento.

Em outubro, surpreendeu os fãs, já acostumados a ouvir sua voz entre os batuques e aranhas do samba de raiz e da bossa tradicional, ao lançar um álbum, sem muito estardalhaço ou promoção prévia. Sim, Dona Elza fez a linha Beyoncé e surpreendeu os fãs com um álbum quando ninguém esperava, e como se não bastasse: o primeiro álbum inteiramente composto de músicas inéditas, depois de sua longa discografia recheada de interpretações de músicas muito bem conhecidas pelo Brasil. A princípio, é difícil de acreditar que uma senhora de 78 anos tenha lançado onze faixas tão contemporâneas, e tão relevantes em 2015. Os principais temas do “A Mulher do Fim do Mundo” é a violência contra a mulher, negritude, morte, e sexo.

Abrindo o álbum, a belíssima faixa “Coração do Mar” é um poema de Oswald de Andrade cantado acapella, um ode a uma terra imaginária, “terra que ninguém conhece”. “É um navio humano / Quente e negreiro / Do mangue”. Conforme a voz de Elza desaparece, surge um quarteto de cordas anunciando a próxima faixa, e talvez a mais bela do álbum, que rendeu seu título: “A Mulher do Fim do Mundo”. Em contraponto às cordas, aparece a percussão típica do samba, acompanhada da voz ríspida de Elza: “Meu choro não é nada além de Carnaval / É lágrima de samba na ponta dos pés”.

“Na chuva de confetes deixo a minha dor
Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida, dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou – e vou – até o fim cantar”

Eu fico arrepiada só de lembrar dessa música. É incrível como o trabalho de Elza pode soar tão familiar, tão tradicional, tão samba, e ainda assim, tão diferente e inovador. Sua voz nesse álbum, suja, pesada, carrega seus 60 anos de carreira, bem como seus 78 anos de dor – desde sua infância difícil até a recente morte de seu quinto filho. E ainda assim, Elza se mostra mais empoderada do que nunca, o que fica bem claro na terceira faixa do álbum: “Maria da Vila Matilde – Porque Se a da Penha é Brava, Imagine a da Vila Matilde”, faixa que mistura um samba sujo com rock.

Confira “Maria da Vila Matilde”

“Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180
Vou entregar teu nome e explicar meu endereço
Aqui você não entra mais, eu digo que não te conheço

Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”


Empoderamento de encher os olhos d’água, né? O melhor é o deboche que permeia essa faixa – Elza diz que quando o servidor público chegar ela oferece um cafezinho e mostra o roxo no seu braço, e que quando a mãe do agressor ligar, ”Eu capricho no esculacho / Digo que é mimado, que é cheio de dengo / Mal acostumado, tem nada no quengo”. Em entrevista, disse “Amor com pancada não existe. Mulher só deve gritar quando for de prazer”. E como coisa do destino, esse álbum foi lançado três semanas antes da prova do ENEM, cuja redação era justamente sobre a violência contra a mulher. Não é à toa que eu digo que a Elza é um clássico que continua relevante.

Seguem duas faixas agressivas e pós-apocalípticas: “Luz Vermelha” e “Pra Fuder”. A primeira é a descrição de um Rio de Janeiro após o fim do mundo, por onde Elza vaga, sobrevivente. A segunda é sobre uma experiência sexual em que Elza se sente como uma espécie de entidade nativa do fogo. Em entrevista para O Globo, Elza explica: “A mulher do fim do mundo é a que vai ficar. O fim do mundo é a eternidade. Sou espírita, dentro do espiritismo existe uma entidade que se chama Iansã. Ela é o fogo, a lava. Eu me vejo como essa entidade maravilhosa se incendiando, mas viva, viva eternamente”. Pra TV Carta, ainda completou: “Pra Fuder não é só sobre cama, não. É a mulher que bota pra fuder de verdade”.

Já tá sem fôlego depois de tanto samba (literalmente)? Pois segura esse tamborim aí que tem mais: a sexta faixa do CD é sobre “Benedita”, uma travesti traficante.

“Ele que surge naquela esquina
É bem mais que uma menina
Benedita é sua alcunha
E da muda não tem testemunha
Ela leva o cartucho na teta
Ela abre a navalha na boca
Ela tem uma dupla caceta
A traveca é tera chefona”

Talvez a faixa mais agressiva do álbum, ela transparece a realidade violenta da travesti no Brasil, e podemos sentir a adrenalina da perseguição policial às que traficam ou se prostituem. Ao longo da música, fica claro o porquê de Elza ter inserido essa faixa no álbum: ela se enxerga na travesti – violentada, injustiçada, forte, persistente e guerreira, Benedita é uma verdadeira “mulher do fim do mundo”, como a própria Elza. E Elza não simplesmente largou essa faixa e saiu correndo: em entrevistas sobre o álbum, quando questionada sobre a faixa, ela não deixa de falar sobre a situação da comunidade trans no nosso país, revoltada com a violência que sofremos. Rainha mesmo, né? Isso sim que é sororidade. Em entrevista à TV Carta, disse “A mulher não tomou ainda o conhecimento que uma mulher ajuda a outra, que a gente precisa ter mulheres do nosso lado. Precisamos de amigas.”

A faixa “Firmeza” é uma conversa descontraída entre jovens amigos que “se trombaram” na rua, provando o quão contemporânea Dona Elza realmente pode ser, simulando naturalmente um diálogo cheio de “qualés” e “firmezas”. “Beleza mano, fica com Deus / Quando der a gente se tromba, beleza? / Você é mermão muleque”. Em “Dança”, faixa mais tranquila que as cinco anteriores, que dialoga com o tango, Elza retorna a questões existenciais e espirituais. “Daria a minha vida a quem me desse o tempo / Soprava nesse vento a minha despedida / … / E se eu me levantar, ninguém vai saber / E o que me fez morrer, vai me fazer voltar”.

Se o álbum abriu com duas músicas belíssimas, ele também encerra com três faixas tão belas quanto. A instrumentação de “O Canal” tem forte influência da música africana, que acompanha o tema da letra: uma jornada espiritual. “Solto” é a única faixa sem distorções, fora o prelúdio acapella do álbum, “Coração do Mar”. Descreve o processo de morrer: a alma se desprendendo do corpo. E, finalmente, fechando o álbum com chave de ouro, “Comigo” começa num crescendo de ruídos e distorções, construindo a tensão do ouvinte. Ao chegar na metade da faixa, o ruído de repente cessa, e a voz de Elza surge novamente num acapella belo e singelo, que encerra o álbum:

“Levo minha mãe comigo
Embora já se tenha ido
Levo minha mãe comigo
Talvez por sermos tão parecidos
Levo minha mãe comigo
De um modo que não sei dizer
Levo minha mãe comigo
Pois deu-me seu próprio ser”

O novo álbum de Elza é fogo, é melancolia, é sofrimento e é liberdade, como há de ser o samba, como é Elza Soares, e como é a mulher brasileira. Empodera, toca na ferida, é aquele tapa na cara que dói, mas nos faz acordar. Trata de racismo, de misoginia, de transfobia. A voz de Elza está rouca, rasgada, e sempre prestes a falhar, e exatamente por isso, mais bela do que nunca. É uma cicatriz que mostra a força que ela precisou pra enfrentar o que enfrentou, e é bela, como as marcas da idade no seu rosto. “Boto o passado todo num cantinho, guardadinho em mim, mas sabendo que o now está aqui. Ontem já foi, amanhã não sei. Então, tem que ser agora”.

Elza Soares é o olhar misterioso de Capitu, a casca grossa de Maria da Penha, o sorriso alegre de Carmen Miranda, o braço forte de Dandara, tudo junto. É daquelas mulheres que fazem História pra lembrar às mulheres do Brasil que esse país é nosso.

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